Texto por Buca Dantas*
Documentário por Mathieu Duvignaud
Uma festa popular e aberta. Uma pequena e pacata cidade, encravada no sertão semi-árido do Nordeste brasileiro. Dia da padroeira. As pessoas [homens, mulheres, adultos e jovens, mas nenhuma criança] vão se aglomerando no leito do rio seco, enquanto curiosos se acotovelam em cima da ponte. Cena de piquenique. Comida, lençóis no chão, bebida e muita conversa.
Mas o assunto é outro...
Todo ano, no primeiro dia de fevereiro, centenas [isso mesmo, centenas] de prostitutas se reúnem no leito seco do Rio Trairy, na pequena e [até o dia anterior e a partir do dia seguinte] bucólica cidade de Boa Saúde, distante 80 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Um dia depois, começam os festejos da padroeira da cidade. É o profano e o sagrado, um após o outro.
A Festa do Rio é uma das festas populares mais profanas existentes no Brasil e que acontece há 130 anos! [festa centenária] E, ironicamente, no mesmo dia da festa da padroeira!
No início da tarde começam a chegar os homens, a maioria já habituada com o ritual da festa. Jovens rapazes, curiosos e ansiosos, ficam mais distantes, observando e aprendendo como participar. Aos poucos as mulheres chegam, de carro, ônibus e caminhões [todos fretados]. Elas vem de várias partes do Estado para venderem sexo, barato e rápido.
A cena da chegada delas é cinematográfica. O som dos motores dos carros é superado pelos urros dos homens, verdadeiros gritos de amor, pilhérias e outras saudações. Os carros param e os homens se comprimem formando um corredor para que as mulheres tenham acesso ao leito do rio, embaixo da ponte. O ambiente toma um aspecto de urgência, como se algo fosse acontecer a qualquer momento. O som, os odores e o frenesi deixam a realidade em suspenso.
Os espectadores estão sobre a ponte, os protagonistas embaixo. O sol vai se pondo. As mulheres fazem uma refeição em mesas postas sob as juremas [árvore típica da região]. Os homens as rodeiam, como animais à espreita da caça acuada. A noite vai chegando e elas começam a dança de insinuações, caminhando por entre os grupos para que os homens ofereçam seus lances.
Enquanto há luz natural os casais procuram uma moita afastada, mas quando a noite cai, a festa atinge o clímax. Sexo em grupo, sem nenhuma cerimônia. Em cima da ponte já não há mais ninguém. O breu da noite apagou a tela. Foram ver a novena. Lá embaixo um rio de gente, fluindo nas ondas do sexo. Tudo isso sem a presença de um único policial. E nem precisa, pois a cerimônia é religiosa!
É uma beleza chocante, quase impossível, indescritível, inimaginável, No entanto, não se pode ignorar um evento que traduz nada mais que uma beleza profana, sempre velada, à margem da sociedade, e sobre a qual não nos caberia nenhum juízo de valor, afinal estamos diante de um fenômeno sociológico que apenas carece de um olhar franco, ausente de preconceitos.
É o paradoxo da beleza.
Acontecimento inédito capaz de chamar a atenção; de causar até admiração! É o belo sem pudor, sem ostentação.
Imaginem uma beleza sem elegância, sem requinte e sem delicadeza; sem encanto e sem princesa; sem suntuosidade e sem fascinação; sem anjo, sem lírio e sem mimo; sem diva e sem ninfa, sem deusa nem rosa, sem fada, sem nada. Nem sublime nem solene, nem poético, nem suave, nem doce, nem suntuoso, nem mágico, porém pitoresco e inconcebível; de extraordinária tentação e esplêndida sedução. Elas [essas mulheres] eram tudo e nada disso, e se davam sem equilíbrio e sem prender o coração.
* Texto publicado originalmente no Overmundo.
3 comentários:
Contextualizando:
Buca Dantas e Mathie Duvignaud são membros fundadores da ONG Micromundo.Dedicam-se a feitura de peças audiovisuais retratando as particularidades culturais de regiões "esquecidas". Costumam realizar filmes chamados de "microdocs", como esses que vocês acabaram de assistir.
Buca e Mathie são as principais cabeças pensantes do movimento potiguar de cinema intitulado: Cinema Processo.
Amplie.
Grato , os editores.
Bora ampliar. Sensacional.
Esse doc aí é doidera. Esse festa é um verdadeiro hino barroco. Merece um estudo de caso mais acentuado, na verdade, no lugar de um micro-doc, um macro-doc.
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